DE
ESCLARECIMENTO
“Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso, a voz do mar foi a da nossa inquietação. Assim o apelo que vinha dele, foi o apelo que ia de nós. E foi nessa consubstanciação que, um novo espírito se formou e se estendeu à Europa inteira, com a reconversão profunda das suas evidências.”
Vergílio Ferreira
Fez há pouco 52 anos — dia 25 de Março de 1957 — que, no Capitólio de Roma, um grupo de personalidades políticas de seis países, envolvidos directamente na tragédia da II Guerra Mundial, afirmaram a sua crença em ideais europeus e universalistas, colocando a sua assinatura nos então chamados Tratados de Roma que criavam a Comunidade Económica Europeia e o Eurátomo. Era um passo decisivo para libertar os seus países do espectro de uma má e trágica herança de guerra. França, Alemanha (antiga R.F.A.), Itália, Holanda, Bélgica e Luxemburgo uniam-se numa comunidade de interesses económicos, primeira via para outras formas de cooperação e convergência. Que passariam por um alargamento até aos 27 Estados membros actuais, de entre os quais Portugal, como bem sabemos e sentimos. A construção europeia, cujo destino imediato é a união económica, monetária e política representa um desafio que extravasa de longe o âmbito dos negócios e dos interesses estratégicos dos mercados. Porque a criação da comunidade, pelas mãos de uma primeira geração de homens como Jean Monnet, Robert Schuman, Adenauer, Gasperi, Churchill, etc., obedeceu a profundos imperativos de liberdade, de justiça social, de democracia, de prosperidade de povos e de cidadãos, que, no seu subsolo mental apresentavam uma raiz cristã, um pendor de fé humanista que os ventos do pós-guerra ajudaram a expandir com mais vigor. Somos, na verdade, herdeiros de um elevado sentido de dignidade e de cidadania que não pode limitar-se às estratégias do pragmatismo das políticas monetaristas de Bruxelas, porque o “espírito” da velha Europa passa, a meu ver, muito mais por Estrasburgo que por Bruxelas, constituindo esta apenas um meio de executar o fim supremo da nova ordem europeia aberta, democrática, atenta às grandes causas e ao “espírito do tempo”, através desse magno fórum que é o Parlamento Europeu, instituição representativa dessa “Europa dos cidadãos” que nos cumpre nunca deixar meter na gaveta, reforçando os laços de um universalismo muito mais vasto que todos os alargamentos, pois que deve visar os destinos do Planeta e seus habitantes. Não teremos sido exemplo, enquanto cidadãos europeus, um bom exemplo para os norte-americanos que elegeram Barak Obama de forma tão esmagadora e ajudando a dar uma volta à crise mundial que a todos afecta e que teve o seu epicentro nos “Wall Street” ?
E se frequentemente se reconhece alguma razão nos argumentos dos chamados eurocépticos, pois é preciso atender aos fenómenos do desemprego, às questões sociais emergentes da aplicação “a frio” dos chamados critérios de convergência, às hesitações da Política Agrícola Comum, às negociações emergentes do alargamento a leste, aos desafios da moeda comum – este Euro que nos chega à carteira e nos obriga a um sentido de pertença finalmente europeu - é urgente ainda reconhecer a premência da definição de políticas culturais, artísticas e educacionais, promotoras dos valores europeístas, consignadas na defesa intransigente de princípios de tolerância, de respeito pela cidadania, pelos Direitos Humanos e sua universalização, dentro e fora das fronteiras da UE. Sabe-se bem que esta reivindicação não comporta somente especulação: os fenómenos recentes das novas migrações dos países de Leste e de África, em particular do Magrebe, as conhecidas modalidades de escravatura e tráfico de pessoas são outros tantos desafios a acrescentar às tentações de alguns nacionalismos, de expressões xenófobas, mais ou menos encapotadas, ou da globalização e seus contrastes.
Acredito nos ideais que orientam e norteiam a nossa integração nesta grande “Casa Comum” e penso como teria sido a nossa vida social e política, desde 74 e 75, sem esta dobragem do nosso novo “Cabo das Tormentas”: que Albânia não seríamos agora? Como iríamos sobreviver a tanta história em derrocada, de mãos atadas, à porta de um Império que apodreceu? A Europa foi e é, na verdade, o nosso destino, o nosso novo mar. Mesmo quando dela ainda temos imenso a aprender, a marear. Sobretudo em boas maneiras. A não sermos tão sujinhos, a termos mais consideração pela Nação que temos orgulho em constituir, sem aqueles truques tão “habilidosos”, ou aquela mania de deixar tudo para o último dia, ou a só dizer mal dos governos à brava, ou dos políticos sem nada construir, sem nada planificar com consistência de futuro, ou com a manigância da “cunha” ,ou da “luva”, ou, ou...
E depois há questões como a identidade cultural, a defesa do património, o mundo da língua, das ideias e dos conhecimentos, o cuidado com a massificação, a subversão dos espíritos pela dominação dos telelixos...Mas sobre tais matérias suponho que é cá dentro, no contexto da nossa “família”, no nosso rectângulo, que muito há para fazer. Tudo se joga numa estratégia de curto e médio prazo. E a meu ver nas escolas, nas instituições educativas, nos outrora chamados “aparelhos ideológicos de Estado”. É daí que tem de partir o engenho das iniciativas formadoras da renovação das mentalidades, condição sine qua non para a nossa sobrevivência simbólica e sedenta de futuro. É este o sentido colectivo do nosso querer, como povo, como nação. Sob pena de perdermos este comboio da História. E muito tragicamente será essa distracção!
José Melo
“Considero-me um contador de histórias, por vezes um organizador. Não sou um bom cantor. Não sou particularmente bom a tocar banjo. Mas sou especialista em conseguir que uma multidão cante comigo, e quando esta canta bem sinto-me feliz." (Pete Seeger)
Pete Seeger é um cantor de intervenção americano, uma espécie de Zeca Afonso que tem 90anos. E que cantou a vitória de Barak Obama no Memorial de Lincoln, em 18 de Janeiro passado, com o hino de Woody Guthrie “This Land is your Land”, em conjunto com Bruce Springsteen e acaompanhados por uma imensa multidão que incluía o recém-eleito Presidente. Este cant’autor da folk, sempre na estrada, foi um grande companheiro de grandes nomes da música norte-americana, como Woody Guthrie e seu filho Arlo Guthrie, Bob Dylan, Joan Baez, e tantos outros, com quem tocou verdadeiras lendas da folk music, algumas cantadas por grupos de rock como “Turn, turn, turn”cantada pelos Byrd nos anos 60. Os temas das canções são a vida do povo simples, dos operários, das gentes humildes e ignoradas, os próprios escravos negros dos campos de algodão dos estados do Sul que geraram a “soul music” e os espirituais negros, que cantavam uma canção muito conhecida, também cantada por Seeger “Kumaya”. Ou “We shall overcame”, esse grande hino da paz, ou seja anti-guerra do Vietname (ou sobretudo do Iraque).
O mais curioso de tudo isto é que Pete Seeger vai continuando a cantar. Espero até que o tenha feito neste domingo – dia 3 de Maio – na festa que a América lhe dispensou no Madison Square Garden, em Nova Iorque. Mas dá-nos uma grande lição de sabedoria e de desprendimento: porque recusou sempre a vida fácil da “carreira comercial”, soube exigir a outros de quem estava próximo, musical e ideologicamente, como Bob Dylan, que se mantivessem fiéis aos seus ideais – de denúncia das injustiças, das guerras, dos intervencionismos militares de que o poder americano se mostrou sempre tão pródigo! A sua luta tem sido tão longa e resistente que teve que atravessar o momento dramático do “macCartismo”, quando, nos anos 50 do século XX, intelectuais, cientistas, militares, jornalistas e outros democratas eram perseguidos pelas suas ideias e acusados de “comunistas”, numa verdadeira “caça às bruxas” movida pelo governo americano através do senador Joseph R. MacCarthy. Tudo se prolongou pelos famosos e prodigiosos anos 60, com as lutas anti-raciais e a favor dos direitos cívicos dos negros, a contestação estudantil à guerra do Vietname e a luta dos povos da América Latina de que a bandeira mítica de Che Guevara foi apenas um apontamento, talvez para acicatar a famosa canção “Gantanamera”.
«Em Pete Seeger conjuga-se o tradicional e o actual, as canções de há séculos e as dos cantores urbanos de hoje. Cantará, umas atrás das outras, uma balada escocesa, uma canção de trabalho judaica, uma melodia negra nascida nas prisões do Sul, uma canção de mineiros, outra contra a Guerra do Vietname. O fio condutor desta enorme variedade é a luta contra a injustiça, a fome e a miséria, a sua indestrutível fé no homem, a luta contra toda a opressão.» Escreve Ramon Padilla, em artigo do “Expresso online” de onde respiguei alguns dados. É muito oportuno que as novas gerações, de lá ou de cá, conheçam uma América, tão viva e interessante, que tantas e tantas vezes viveu ou vive ainda no esquecimento, na marginalização apenas porque recusa viver muito consciente e livremente à sombra do dinheiro.
José Melo