E não se trata de nenhum Giuseppe Tornatore , imortalizando o “seu” Alfredo e o “seu” Totó/ Salvatore ou a sua inesquecível Elena, numa pequena, pobre e ignorada terrinha do sul de Itália da II Guerra e do após-guerra…
Mas há nele o mesmo brilhozinho nos olhos, igual olhar apaixonado enquanto explica os truques, os desenrascanços, as mil e uma formas de espalhar, pelas recônditas aldeias alentejanas, o seu amor generoso pela “sétima arte”. António Feliciano é um septuagenário muito bem conservado que se afirma capaz de celebrar os seus 50 anos de cinema no próximo Dezembro de 2011, “se lá chegar”…E haverá de, pois com certeza. Fundou há mais de 30 anos um cineclube em Odemira que já fechou. E nem admira: hoje compra-se DVD’s a retalho, pirateados e por tuta e meia, em feiras, às escâncaras!
O meu conhecimento deste magnifico “achado” veio das mini-férias da Páscoa em Vila Nova de Milfontes, mendigando um pouco de sol, um pouco de mar azul, nas lonjuras quilométricas de uma luminosidade de andorinhas. Ali, onde a pretexto da Feira de Turismo, pequena mostra dos produtos da região, dos vinhos às ervas, do turismo rural ao artesanato e à gastronomia, há cante, há burricadas, animação de rua, teatro e cinema ao ar livre. E é deste que se trata agora. No largozinho da Vila, projectando na frontaria da velha igreja matriz azul e branca, onde se colocou um largo pano branco a servir de ecrã, e logo após o sol-pôr, com umas cadeiras de plástico para quem quiser “entrar” ou “ficar”, eis os filmes que valem a pena. Para quem teima desafiar os frios da noite primaveril ou passa rua abaixo e deita o olho espantado pelo insólito da cena, ou. Na Sexta-feira Santa o “Fame” e no Sábado “Julie & Júlia”,com essa cada vez mais prodigiosa Meryl Streep. Tudo muito profano e distante da quadra litúrgica ou talvez não! Que noutras épocas se haveria de passar algum dos grandes êxitos, em cinemaskope, de Cecil B. DeMille,”Os 10 Mandamentos”, obrigatórios na Semana Santa, ou o inevitável “Ben-Hur”, com um Charlton Heston, de músculos de aço, pronto a salvar o seu povo eleito!
Proprietário de uma sala (“mono-sala”, como gosta de frisar, para se distanciar do conceito actual das salas multiplex instaladas nos centros comerciais que têm vindo a crescer como cogumelos por este país fora), o Cinema Girasol, onde promove sessões comerciais, com bilhetes ao custo de 4 euros, em ambiente climatizado, confortável e sempre acolhedor para o cinéfilo, seja turista, seja filho da terra, o amigo Feliciano é um verdadeiro “Senhor Cinema”. Não só porque a sua conversa deixa depreender uma vastíssima cultura cinematográfica, como se lhe desenham constelações de metáforas no rosto,e nele se vão construindo, de súbito, os estúdios de uma qualquer Cinecittà ou de uma Paramount. Ele vive e respira a sétima arte e preocupa-se com o seu futuro, considerando que os custos hão-de impedir a generalização do 3D e que as salas de bairro estão condenadas pela voragem do vídeo e dos novos modelos de tv-cabo. E atreve-se, contra ventos e marés, a ser uma espécie de ONG (organização não-governamental) do cinema, com a sua carrinha de projeccionista, onde transporta toda a parafernália que usa por essas aldeias e vilas Alentejo fora, em dias de feira ou de romaria, crianças à borla, velhos desdentados e tristes, mendigando imagens de um sorriso ou de algum beijo jovem há muito perdido! Como me saltou à lembrança, por razões de proximidade geográfica e doutras, o teatro La Barraca de Garcia Lorca, saltaricando de terra em terra.
Mas volto à carga porque, como diz Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, em “Ecrã Global”: «A arte do cinema é, primeiro e antes de tudo, uma arte de consumo de massas, sem outra ambição que não seja a de divertir, de dar prazer, de permitir uma evasão fácil e acessível a todos, ao contrário das obras vanguardistas, herméticas e provocadoras , destinadas a revolucionar o velho mundo para fazer nascer o “homem novo”. O objectivo é oferecer novidades de produção sistemática que sejam acessíveis e possam distrair o maior número de pessoas possível. É aí, precisamente, que se encontra a modernidade irredutível do cinema.» (pgs. 38/9, Ed. 70). Assim sendo, caro amigo Feliciano, continue o seu projecto existencial, essa sua missão laica de espalhar a “fé cinéfila” numa actividade que ou entra pela vida dentro ou cuja dimensão forma com ela uma tal simbiose que só o Cinema Paraíso foi capaz de evidenciar na perfeição mais absoluta. Como sumo-sacerdote (no bom sentido, entenda-se), invejo-lhe o facto de ter já alguns aprendizes que lhe seguem os passos e lhe hão-de continuar a obra. Porque tenho para mim, em segredo, que a sétima arte foi, é e será sempre uma “fábrica de sonhos” que nunca abrirá falência, glosando a repetida fórmula shakespeariana “We are such stuff as the dreams are made on” (Hamlet).
José Melo (prof. de Filosofia na Escola Artística Soares dos Reis – Porto)