domingo, 10 de outubro de 2010

O “telégrafo” por que me chegou a República


A minha avó Josefina nasceu em 1880 e sabia ler. Era, na nossa aldeia, juntamente com a mãe da professora D. Florinda, a única mulher a saber ler, escrever e contar, para além de costurar. Andou na “Mestra”. Iam as duas meninas pelos montes fora, atravessando duas aldeias, com a merenda para o dia inteiro. Na monarquia não havia ensino público universal e gratuito como a República, fundada em 5 de Outubro de 1910 veio a consagrar na sua Constituição de 1911.

Mas a minha avó, que durante a I Grande Guerra Mundial escrevia muitas cartas para os soldados lá da aldeia que estavam na guerra, a pedido das suas famílias, não me parece que tenha gostado particularmente da instauração do regime republicano. E isto deve-se ao facto de o meu avô José, já casado com ela e com uma família numerosa, ter sido preso aquando da chamada Monarquia do Norte, em Janeiro de 1919, quando no Porto um conjunto de revoltosos, na sequência do assassinato de Sidónio Pais, em 1918, proclamou aquilo que os republicanos vieram a chamar o “Reino da Taulitânia”. Todo o Norte, à excepção de Chaves, proclamou a monarquia, hasteou a bandeira azul e branca, e jurou fidelidade ao Rei D. Manuel II que se encontrava exilado em Inglaterra, cantando o hino da Carta Constitucional.

Ora o meu avô José, que morreu antes de eu nascer mas de quem herdei o nome, era amigo do padre da freguesia, foi-lhe levar uns sapatos novos – que haviam sido feitos na sua oficina – e sabendo notícias da instauração de uma Junta Provisória no Porto. E na sequência daquelas notícias, resolveu tocar o sino da Igreja “a de festa”, como sinal de alegria e alvoroço. Una dias depois, porém, os revoltosos são presos e condenados e, na sequência deste processo o meu avô é preso, julgado e condenado. Marcha de Felgueiras para Braga e daqui segue para o Porto, onde fica encarcerado largos meses na Cadeia da Relação, na Cordoaria, onde estivera, uns anos antes, Camilo Castelo Branco.

Contava minha avó que, quando o vinha visitar lhe trazia um bolinho e algum mimo assim. Pois logo lhe era esfarelado `procura de arma ou lima escondida…Os piolhos eram uma peste terrível, dada a grande concentração de presos por cada cela e a grande falta de higiene.

A minha avó, que tinha os filhos pequenitos, passou grandes privações e dificuldades, valendo-lhe o facto de haver uns parentes no sector republicano que distribuíam senhas de racionamento. Dizia-nos ela que passou grandes aflições por causa da incerteza da situação judicial do meu avô. Por vezes, a sua sogra, uma simpática velhinha de Tagilde, passava por um republicano, “daqueles de bigode arrebitado”, um senhor importante de Vila Corneira , que seguia a cavalo. Lá “de baixo”, a minha bisavó implorava misericórdia para o filho e perguntava quando o iriam soltar. E minha avó Josefina, num tom dramático, compunha a voz, depositava mais um pouco de rapé numa narina, e dizia-nos solenemente , reforçando a voz e os gestos, para imitar melhor o burguês cavaleiro republicano que “os presos iam ser embarcados para o alto-mar, amarrados a uns pipos e largados por lá. Aí a velhinha quebrava o ânimo num pranto.

Tudo isto era acompanhado da “imagem” popular de um Afonso Costa, tido como um autêntico demónio com cornos, um mata-frades, um inimigo da religião e do povo simples…Apenas os políticos do Estado Novo, com Salazar à frente, nos haveriam de libertar de todas estas desgraças, medos e confusões…

Uma mensagem política desta natureza, com todo este colorido, teria deixado em mim e nos meus irmãos um apego incondicional à monarquia. Mas não deixou. E isto por diversas razões:

1º-Porque a minha cultura política, forjada na juventude na luta contra a ditadura e em prol da democracia e da liberdade, ensinou-me os valores cívicos da República, tais como o respeito pelos outros e pelo bem comum, a importância da educação como instrumento de libertação do ser humano de todas as formas de constrangimentos, de desigualdades e de opressões, da luta pela igualdade entre mulheres e homens e pelo fim da chamada “nobreza de sangue”, possibilitando uma igualdade de oportunidades de todos os cidadãos no que respeita ao Estado e ao exercício do poder.

2º-Porque um Chefe de Estado, eleito periodicamente pelos cidadãos, dá mais garantias de idoneidade e de independência do exercício do poder que a existência de um poder transmitido hereditariamente, sempre marcado por caprichos, por favoritismos, por séquitos de corte mais ou menos duvidosos…Se estes ingredientes são muito oportunos para alimentar as revistas “del corazon” de uma certa Europa, não o são para garantir a soberania do povo, nem para agilizar soluções colectivas para os Estados modernos. A história da República Americana prova-o bem ao longo de 3 séculos.

3º-Porque o laicismo da República, garantindo uma efectiva separação entre o trono e o altar, veio libertar os cidadãos, o país e as instituições religiosas, a começar pela Igreja Católica, do peso de um apoio invisível e mascarado que não sustentado na força das convições, da fé e do próprio Espírito de Deus, que está acima do poder do Estado para se impor e “governar a terra”. Que me desculpe o meu avô, lá no Além, mas esta terra portuguesa, é mais cristã, a meu ver, como católico praticante que sou, mais cristã e mais livremente católica, em República que em Monarquia.

4º-Porque o exercício da soberania popular ou nacional, nas diferentes interpretações de Montesquieu ou de Voltaire, vem significar o exercício de direitos e deveres dos cidadãos e da sua responsabilização individual e colectiva no âmbito de uma sociedade concreta, historicamente situada e aberta as vicissitudes do tempo e da História: sabe-se o quanto a República, para se instaurar, causou sofrimentos a alguns e a muitos membros da Igreja Católica, com intolerância e radicalismos que, felizmente, não vieram a repetir-se. Mas estes dados históricos vieram trazer uma nova mentalidade e uma sensibilidade, em particular, das gerações mais jovens. Houve francos progressos no que respeita ao diálogo intercultural e à abertura à sociedade, mesmo no tempo da chamada ditadura salazarista.

José Melo (de Filosofia)

Sem comentários:

Enviar um comentário