quinta-feira, 11 de março de 2010

“RETRATOS IMPREVISÍVEIS” DE DE=FRANCESCO


“RETRATOS IMPREVISÍVEIS” DE DE=FRANCESCO

( A HOMENAGEM NUMA “EXPOSIÇÃO VIRTUAL”-A POSSÍVEL – A UM GRANDE ARTISTA)

« Não somos nós que falamos a língua, é a língua que nos fala» ( M. Heidegger)

Max Weber identificava a História como uma estrada juncada de cadáveres de valores destruídos. Convém recordar esta concepção apocalíptica do Tempo, numa época de comemoração dos 125 anos da Escola Soares dos Reis. Porque a racionalidade fria do tempo cronológico encolhe-nos os ossos, trava-nos os projectos, troca-nos as voltas, como aliás todos sabemos e sobretudo sentimos. Mas há outra espécie de tempo, misterioso e afável, que invade os nossos trabalhos e os dias, esse tempo fabuloso, reversível e favorável, cíclico, que nos sustenta as almas, nos deixa instituir a vida e a festa, que nos faz sonhar. E vencer medos!

Ora, creio eu, é deste último movimento da ampulheta que “fala” a exposição virtual de Manuel De=Francesco. Porque ela constrói uma novela poética, no sentido grego da “poiesis”, onde os personagens desfilam como numa “passerelle” e onde é consentida uma ordem semântica permanentemente des-construida, no âmbito da história da cultura portuguesa. Porque nós, os “leitores”, somos desafiados a criar a nossa própria narrativa, a partir de “significantes” ilustrados, tais como escritores, poetas, artistas de palco, músicos, cientistas, criadores, comunicadores, gente da intervenção cívica, animadores de tertúlias em botequins, construtores de mitos e de impérios, cronistas de reis e do povo, gente daquém e dalém, os próprios reis, eles mesmos, capazes de autorizarem uma biografia mais ou menos oculta. É significativo um traço comum na teia imensa que une a representação icónica destas figuras gradas do nosso passado colectivo: a Morte. E aí De=Francesco é um iconoclasta imperdoável, ainda que lhes queira restituir o direito a viverem “de outro jeito”, o único a que têm direito : retirados do limbo do esquecimento a que parecem votados pelo conjunto dos poderes e das práticas societais: quem lê hoje um Régio? Um Cardoso Pires? Um Agostinho da Silva?

Datada e dirigida, esta vasta galeria de figuras que ilustram um panteão imaginário, a modos do célebre “museu”malrauxiano, traz-nos uma certa ideia de nobreza canónica. Não porque aí figure, com um sentido obsessivo, o mito sebastianista, transferido para a nossa realidade quotidiana por intermédio de um expressionismo cuja decoração nos transporta para o ambiente dos clássicos cafés da Baixa portuense, como nos “falam” mesas e cadeiras ou outros adereços, mas porque o pintor quis, a seu modo, trazer a poesia para a rua, convocar a literatura para as nossas (quase resistentes e clandestinas) tertúlias! E nesse acto mesmo De=Francesco comove-se e comove-nos, brinca com os seus e nossos heróis, impondo-se uma plástica que ora lembra Pomar, ora evoca Paula Rego…E não a terá assumido intencionalmente, como é óbvio. Porque ademais, não deixa de ser curioso que nós, semi-distraídos “voyeuristas” destes múltiplos e ecléticos actos criadores, não ignoremos a direcção “psicanalítica” das setas de São/Dom Sebastião, lançadas sob a voragem dramática do inconsciente francesquiano! Dos seus fantasmas e pesadelos para os exorcizar.

Se a função da Arte é, dizem alguns, reconciliar-nos com nós próprios, mesmo que seja apenas em sonho ou disfarce , então eu quero felicitar todos aqueles que contribuíram para a publicação desta exposição virtual e agradecer-lhes o seu trabalho, tal como ao artista. Porque fui a Amarante, de propósito, para visitar a Exposição que lá esteve no Museu Amadeo de Sousa Cardoso, no final da primavera de 2008, e não consegui, por ter ido num dia feriado (dia do Corpo de Deus). Correu-se, finalmente, o pano deste imenso palco que é a Net, para de uma forma modesta, mas digna, podermos poisar o nosso olhar em cada um dos morfemas que compõem este longo e saboroso discurso, donde podemos (e sobretudo devemos!) cívica e eticamente lançar um olhar crítico, exigente e apaixonado sobre a Cultura Portuguesa na expressão dinâmica de uma certa e curiosa temporalidade esteticamente corporalizada.

José Melo (de Filosofia).


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