Escrevo-vos daqui do Hades, local para onde Orfeu me encaminhou, após aquela fatídica e fria noite de Fevereiro em que pus termo à minha estadia nesse mundo, nessa cidade já tão distante no tempo e estranha nos hábitos e modos de viver...
Recordo, com saudade, as tristes vielas fedorentas de um Porto sem carros, granítico e nebuloso, desleixado e puritano, onde almas tísicas e corpos viciosos se confundiam com sombras nocturnas, a dobrar românticas esquinas no repenicar dos sinos às trindades! Como era estranho esse burgo,de "timbre pardacento", como alguém lhe haveria de chamar um dia, sobretudo quando contrastando como essa Paris luminosa e coquette, cheia de bulício e fru-fru, disposta a ser contada num daqueles nacos da mais linda prosa lusitana que o meu amigo Zé Maria, o nosso Eça de Queirós, nos deixaria nos seus "Echos de Paris" e sobretudo na sua "Cidade e as Serras"!
Eu fui um miudo melancolicamente triste e envergonhado que jogava o meu pião no terreiro de Santo Ovídio, ao alto de Gaia, donde corria, a pé, as manhãs de nevoeiro, para descer ao rio Doiro, tomar a barca, atravessar as águas perigosas e subir lesto, rumo à Escola das Artes que ficava ali pela actual Biblioteca Pública de S. Lázaro. Fazia-o diariamente, sem autocarros ou eléctricos, pois nesse tempo nada mais havia que carroças de cavalos e mulas, para além dessa grande novidade dos combóios a deitar fumo. Muito fumo. Em pequenito, fechava-me num anexo da loja onde o meu pai servia canadas de vinho, a desenhar nos papéis de embrulho e a amassar figuritas em barro vermelho que punha a cozer ao sol. Mais tarde, à mesa farta dos meus amigos Diogo de Macedo, eu enchia de encantamento a criançada, ao moldar, com miolo de pão, uns bonequitos a que chamava "papuginhos de queneacho".
Sei que vos arranjaram uma casa nova. Linda, arejada,luminosa e a cheirar bem. Estimai-a, valorizai o vosso esforço de aprendizagem, sede escrupulosos e exigentes, ganhai gosto pela experimentação contínua, atrevei-vos a imitar a minha obstinação que me impedia de parar: noite e dia eu ensaiava um mundo de possibilidades e de formas. O meu espírito era assaltado por inquietações estéticas que me impediam de parar, de desafiar alunos e colegas. E visitava os museus! Lá fora e aqui, eu entrava nas igrejas, em palacetes, em edifícios públicos, em praças ou pracetas, aí onde me parecesse haver lugar para manifestações artísticas. E foi deste meu hábito, tornado obsessão, que me sairam ideias para "o Desterrado", para a "Flor Agreste", para o "Busto da Inglesa", para o "Firmino" e tantos outros trabalhos.
Quero deixar-vos um segredo: o nome do vosso jornal escolar é "O Caniço" e sabeis porquê? Porque essa era a alcunha da nossa família. Quando numa noite de insónia eu sobressaltei a vizinhança de Gaia, ao lançar uma enorme estrela de papel, estava longe de pensar que esse gesto, misterioso e cósmico, haveria de espargir as centelhas de luz do vosso jornal "O Caniço", em boa hora criado. Sinto-me muito honrado pelo facto de a minha alcunha servir causa tão nobre. Eu, que continuo a ser um "Desterrado" no meu próprio país, peço emprestadas umas palavras que li, algures, na vossa casa velhinha da Rua Firmeza: "Oxalá as centelhas dessa luminosidade criativa possam continuar a refulgir de intensidade nas cabeças moças da nossa "Soares", ao longo dos séculos".
Recordo, com saudade, as tristes vielas fedorentas de um Porto sem carros, granítico e nebuloso, desleixado e puritano, onde almas tísicas e corpos viciosos se confundiam com sombras nocturnas, a dobrar românticas esquinas no repenicar dos sinos às trindades! Como era estranho esse burgo,de "timbre pardacento", como alguém lhe haveria de chamar um dia, sobretudo quando contrastando como essa Paris luminosa e coquette, cheia de bulício e fru-fru, disposta a ser contada num daqueles nacos da mais linda prosa lusitana que o meu amigo Zé Maria, o nosso Eça de Queirós, nos deixaria nos seus "Echos de Paris" e sobretudo na sua "Cidade e as Serras"!
Eu fui um miudo melancolicamente triste e envergonhado que jogava o meu pião no terreiro de Santo Ovídio, ao alto de Gaia, donde corria, a pé, as manhãs de nevoeiro, para descer ao rio Doiro, tomar a barca, atravessar as águas perigosas e subir lesto, rumo à Escola das Artes que ficava ali pela actual Biblioteca Pública de S. Lázaro. Fazia-o diariamente, sem autocarros ou eléctricos, pois nesse tempo nada mais havia que carroças de cavalos e mulas, para além dessa grande novidade dos combóios a deitar fumo. Muito fumo. Em pequenito, fechava-me num anexo da loja onde o meu pai servia canadas de vinho, a desenhar nos papéis de embrulho e a amassar figuritas em barro vermelho que punha a cozer ao sol. Mais tarde, à mesa farta dos meus amigos Diogo de Macedo, eu enchia de encantamento a criançada, ao moldar, com miolo de pão, uns bonequitos a que chamava "papuginhos de queneacho".
Sei que vos arranjaram uma casa nova. Linda, arejada,luminosa e a cheirar bem. Estimai-a, valorizai o vosso esforço de aprendizagem, sede escrupulosos e exigentes, ganhai gosto pela experimentação contínua, atrevei-vos a imitar a minha obstinação que me impedia de parar: noite e dia eu ensaiava um mundo de possibilidades e de formas. O meu espírito era assaltado por inquietações estéticas que me impediam de parar, de desafiar alunos e colegas. E visitava os museus! Lá fora e aqui, eu entrava nas igrejas, em palacetes, em edifícios públicos, em praças ou pracetas, aí onde me parecesse haver lugar para manifestações artísticas. E foi deste meu hábito, tornado obsessão, que me sairam ideias para "o Desterrado", para a "Flor Agreste", para o "Busto da Inglesa", para o "Firmino" e tantos outros trabalhos.
Quero deixar-vos um segredo: o nome do vosso jornal escolar é "O Caniço" e sabeis porquê? Porque essa era a alcunha da nossa família. Quando numa noite de insónia eu sobressaltei a vizinhança de Gaia, ao lançar uma enorme estrela de papel, estava longe de pensar que esse gesto, misterioso e cósmico, haveria de espargir as centelhas de luz do vosso jornal "O Caniço", em boa hora criado. Sinto-me muito honrado pelo facto de a minha alcunha servir causa tão nobre. Eu, que continuo a ser um "Desterrado" no meu próprio país, peço emprestadas umas palavras que li, algures, na vossa casa velhinha da Rua Firmeza: "Oxalá as centelhas dessa luminosidade criativa possam continuar a refulgir de intensidade nas cabeças moças da nossa "Soares", ao longo dos séculos".
Afectuosamente, António Soares, o Caniço.
Quero felicitar o António Soares que tão bem soube retratar a nossa cidade, a vontade e a perseverança do Soares dos Reis e a esperança na nossa nova escola...
ResponderEliminarQuero felicitar o António Soares que tão bem soube retratar a cidade, a vontade e perseverança do Soares dos Reis e a esperança na nossa nova Escola...
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